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Estruturas Narrativas: O Esquema Quinário

(Este artigo é o terceiro e último de uma série de três sobre estruturas narrativas.)

 

Em sua “Poética (Ars Poetica)”, o poeta romano Horácio diz que “[…] não deve uma peça ficar aquém nem ir além do quinto ato”. Aparentemente, entre Aristóteles e Horácio houve uma evolução muito grande da forma como o teatro era pensado. Só que, infelizmnete, Horácio não foi muito mais além que isso – ao contrário do Estagirita, o latino não explicou como essa divisão deveria ocorrer. Contudo, marcados pela influência greco-romana, muitos autores ocidentais continuaram escrevendo para o teatro com esse esquema.

 

Mas que esquema é esse, afinal?

 

Mesmo que Aristóteles tivesse declarado que o esquema básico envolvia ao menos “início (prótase), meio (epítase) e fim (catástrofe)”, alguns autores devem ter notado que muito mais ocorria entre esses três atos. Para começar, entre o início e o meio deve haver algo – bem como entre o meio e o fim.

 

Mas isso não é óbvio?

 

Em termos práticos, sim. Mas em termos estruturais/funcionais para a Arte, isso é um pouco mais complicado. É preciso pensar em como ocorrerá o desenvolvimento da personagem atrelado à evolução do enredo. Essa preocupação é que leva muitos a escreverem manuais de roteiro ou dar palestras sobre escrita criativa. Dependendo da duração de uma peça, filme ou mesmo romance, é preciso pensar em como manter a atenção do espectador ou leitor o tempo todo.

 

Essa percepção de uma norma estrutural será pensada pelo dramaturgo e romancista alemão Gustav Freytag, que irá expôr um esquema quinário “padrão” – os cinco atos – em seu manual clássico, Die Technik des Dramas. Essa obra irá se contrapôr à proposta de autores contemporâneos de Freytag, como Henrik Ibsen (“A Dama do Mar” e “John Gabriel Borkman são peças com quatro atos, um experimento do autor norueguês. Vide que “Um Inimigo do Povo” tem cinco atos.) ou George Bernard Shaw, que criava peças com um ato apenas!

 

A estrutura que Freytag propunha era a seguinte:

 

 1

 

Isso me lembra algo…

 

Pois é, a imagem que ilustra o artigo sobre estruturas de três atos. Mas existem algumas diferenças, certo? Ocorre que toda percepção de uma estrutura narrativa só pode ser derivada de algo tão simples e básico – mas útil – como a estrutura de três atos.

 

No esquema quinário de Freytag – aliás, chamado de Pirâmide de Freytag -, os atos se sucedem da seguinte maneira:

 

  • Introdução: o espectador/leitor é apresentado a uma situação “X”. Nessa situação, seremos apresentados às partes protagonista e antagonista;
  • Elevação da Ação: algo irá ocorrer para que essas partes entrem em choque;
  • Clímax: o choque/conflito ocorre, marcando o ponto em que nenhuma das partes poderá retroceder;
  • Declínio da Ação: uma das partes se sobressai à outra;
  • Dénouement: essa expressão em francês, que significa “desatar”, “desenlace”, remete ao “nó” aristotélico – “a parte da tragédia que vai desde o início até o ponto a partir do qual se produz a mudança para uma sorte ditosa ou desditosa” (Poética) -, ou seja, a resolução em si – “chamo desenlace a parte que vai desde o princípio desta mudança até o final da peça”.

 

Esse tipo de estrutura se faz presente principalmente nas peças de Shakespeare, como “Romeu e Julieta”:

 

  • 1º ato: Romeu aparece na casa dos Capuleto atrás de Rosalinda e conhece Julieta. Detalhe: há uma guerra entre as famílias Montecchio e Capuleto;
  • 2º ato: a cena do balcão – o reconhecimento dessa luta entre as famílias. Romeu pede ajuda do Frade;
  • 3º ato: Romeu mata Mercúcio, primo de Julieta, e é exilado;
  • 4º ato: Paris pretende se casar com Julieta, que pede ajuda do Frade que procura entrar em contato com Romeu pra explicar-lhe sobre um estratagema, que envolve Julieta se fingir de morta. Tudo dá errado;
  • 5º ato: Romeu, sabendo da morte de Julieta, volta para Verona. Paris e ele se enfrentam junto à tumba de Julieta. Paris morre, Romeu comete suicídio, e Julieta, que fingia estar morta, se mata por fim. As famílias aprendem a lição e Verona fica em paz.

 

Que belo “desenlace”, hein?

 

Levemos em conta que a questão em “Romeu e Julieta” é muito mais política que individual – são duas famílias em guerra que prejudicam a paz de Verona. O amor dos dois é uma ameaça ao equilíbrio de forças, um ataque ao orgulho tradicional e ancestral de ambos os lados. Esse é o fator complicador, aquilo que demanda uma (re)solução.

 

Um outro exemplo clássico de como essa Pirâmide pode ser demonstrada na ficção está em “Édipo Rei”, de Sófocles:

 

  • 1º ato: o povo de Tebas pede ajuda a Édipo, seu rei, para que ele, um sábio, descubra o que pode estar por trás de uma peste mortal que assola a todos;
  • 2º ato: Édipo manda chamar Tirésias, um profeta, que responde de forma complexa às perguntas de Édipo;
  • 3º ato: Jocasta descobre o verdadeiro motivo por trás da peste – ela é mãe de Édipo, de quem foi profetizado que mataria o pai e se casaria com a mãe;
  • 4º ato: o Pastor que encontrou Édipo vivo, após ter sido abandonado quando bebê, conta toda a história até o rei perceber que a profecia se cumpriu;
  • 5º ato: Édipo se cega e Jocasta se mata. Édipo é exilado por Creonte.

 

Mais um belo “desenlace”, né? Ocorre que o problema todo está na discussão entre Destino e Livre Arbítrio. Quem acaba ganhando é, justamente, o Destino, que brinca com Édipo fazendo-o pensar estar agindo de forma livre. Além disso, Édipo é protagonista e antagonista – as causas de suas dores e das de Tebas se originam dele.

 

Mas bem, não há algo esquisito aí?

 

Como assim?

 

Geralmente o clímax vem antes da Resolução/Dénouement/Ato Final, não?

 

Pois é. E é justamente por isso que a Pirâmide de Freytag não é muito utilizada na atualidade. Quando comparamos a estrutura trágica e seus interlúdios com a Pirâmide de Freytag, faz todo sentido. No entanto, ao querermos ver ação em tudo, parece até que estamos “esticando” os atos para preencher espaço. Afinal, Shakespeare e Sófocles podem ter tido muito sucesso com tais formas – embora mesmo a fórmula de Sófocles fosse a de três atos em si -, mas isso ocorre porque havia uma série de questões humanistas e filosóficas das quais esses autores tratavam. Shakespeare podia fazer uso de sub-enredos, enquanto que as peças trágicas eram encenadas durante uma festividade religiosa. A tendência atual no teatro – nas Artes em si – é ser direto, não distrair o espectador. Do contrário, isso implicaria no risco de perdermos a questão principal de vista – mesmo pra um leitor que apenas analisasse o texto. Aliás, de acordo com o clímax freytagiano, se a tensão está toda no meio, fica cansativo para o espectador esperar pelo declínio. Não, algo tinha que ser feito… e os dramaturgos, críticos e escritores voltaram à fórmula de três atos e/ou (re)pensaram esse esquema quinário.

 2

 

Err, não mudou muita coisa, não é?

 

Como assim não mudou?! Olhe novamente.

 

Ahh… De fato, algo mudou.

 

Pois é, e não só na disposição da estrutura, mas na compreensão da dinâmica entre os atos. Aristóteles e Freytag viam as peças em formas categóricas e propunham que esses modelos estruturais fossem os usados; Propp não propôs a utilização de suas funções na literatura contemporânea, apesar de ela vir a ser utilizada por textos maravilhosos ou mesclada à Jornada do Heroi. O problema é que seguir categorias definidas pode prejudicar a forma como o conteúdo se apresenta ao espectador/leitor. Que tudo tenha começo, meio e fim é fato, mas daí a querer “determinar” os pontos de virada entre esses três à despeito da “atenção” do espectador/leitor?

 

Teóricos como A.J. Greimas, Paul Larivaille e Claude Brémond, por meio de seus estudos de narratologia, acabaram por chegar à conclusão de que toda narrativa segue um esquema quinário, mas não aquele de Freytag, o qual parece ser “estrito” em vez de “natural”.

 

  • Estado inicial: a introdução ao momento presente;
  • Complicação: dentro desse momento, algo ocorre;
  • Dinâmica: um embate entre forças;
  • Resolução: o embate chega, enfim, ao seu clímax, sendo encerrado;
  • Estado final: uma nova situação se apresenta – ou passa a um estado semelhante ao inicial – após o embate.

 

Cada um desses atos é elaborado em cima de uma “sequência”, pensada por Brémond como o momento da ação em que a situação é perturbada e as forças que se opõem partem para o ato.

 

Poderia ser mais claro?

 

Digamos que o “estado inicial” apresente uma situação de paz. O fator complicador será botar essa paz em risco. Poderíamos pensar o oposto, como uma situação bélica sendo posta em risco por uma solução pacífica – algo que se vê muito em romances fantásticos, como a série “Harry Potter” ou a trilogia “O Senhor dos Aneis”.

 

Como no esquema de três atos, somos apresentados a uma relação causa-consequência, dentro da qual atores/actantes/personagens realizam de forma ativa a passagem de um ato a outro. Como na vida real, em que pra alcançarmos algo precisamos seguir uma série de etapas com suas complicações e obstáculos, o mesmo ocorre na ficção. Daí uma situação climática como a apresentada pela resolução quinária prender tanto a atenção do leitor/espectador: muitas vezes, mesmo próximos da meta, sentimos uma tendência a desistir. É o momento do tudo ou nada. O que é proposto no início, na complicação, é o que interessa ao espectador/leitor.

 

Vemos a aplicação de um esquema como esse, por exemplo, em “Ensaio sobre a Cegueira”, de Jose Saramago:

 

  • 1º ato: um homem fica cego. Todo mundo fica cego;
  • 2º ato: o Governo manda internar todos. A anarquia domina do lado de fora;
  • 3º ato: ocorrerá um embate entre os instintos animalescos e humanos;
  • 4º ato: quando tudo parece em paz, todos se conformando, a Cegueira desaparece;
  • 5º ato: em aberto, visto que aquele País terá que ser reconstruído, mas alguma lição ficou com todos.

 

O homem ficar cego não é uma “complicação”?

 

Não, pois o romance começa com a Cegueira. Enquanto é apenas um caso, tudo bem. Mas quando se torna uma epidemia, a forma como os cegos são tratados é que “complica” o enredo em si, visto que o nosso Foco Narrativo se dispõe a seguir aquele grupo de pessoas em especial, que passará por um verdadeiro inferno procurando manter sua dignidade.

 

Precisamos entender que o “estado inicial” é uma situação em si, não um ponto calmo/quieto/pacífico. É a nossa introdução àquele enredo. Com essas informações, teremos dados suficientes pra prosseguir na leitura.

 

Agora, se tivéssemos que repensar os esquemas das peças citadas acima, “Édipo Rei” e “Romeu e Julieta”, nosso esquema quinário contemporâneo seria dessa maneira:

 

Édipo Rei

 

  • 1º ato: o Povo de Tebas se apresenta a Édipo pedindo que ele ajude a solucionar o problema da peste;
  • 2º ato: Tirésias se apresenta e declara por metáforas a razão da peste;
  • 3º ato: Jocasta percebe o real motivo da peste e discute com Édipo. Este ouve a fala do Pastor;
  • 4º ato: desconsolado, Édipo se cega e Jocasta se mata;
  • 5º ato: Creonte, cunhado de Édipo, exila-o.

 

Viram como algo mudou entre esses esquemas? O momento de tensão é deslocado do 3º ato em si para um momento entre o 3º e o 4º atos. O espectador/leitor se pergunta, “o que Édipo fará agora?” O choque posterior faz mais sentido naturalmente que ao deixarmos tudo separado, sem fluidez.

 

Vemos o mesmo ocorrendo em “Romeu e Julieta”:

 

  • 1º ato: Romeu conhece Julieta;
  • 2º ato: a guerra entre as famílias é um fator complicador, e eles reconhecem isso;
  • 3º ato: Mercúcio, primo de Julieta, é morto em um duelo por Romeu, que é exilado de Verona;
  • 4º ato: Julieta finge estar morta. Romeu e Paris, que queria se casar com ela, lutam junto à tumba dela. Romeu se mata, assim como Julieta após ver o corpo do amado;
  • 5º ato: Verona está em paz.

 

Tanto em “Édipo Rei” como em “Romeu e Julieta”, o esquema quinário aqui aplicado prioriza os atos de suas personagens, numa escalada que depende apenas de suas vontades. Daí os próprios teóricos proporem que essa superestrutura é, bem, basicamente universal. Toda história, por mais simples que seja, acaba exibindo pontos de virada semelhantes, lembrando o esquema proppiano e suas funções – que, aliás, reforçavam a ideia de ação/atitude das personagens como momentos definidores da narrativa.

 

Diferente das questões que envolvem as camadas interpretativas do texto, estamos aqui diante de formas de entender a progressão de um enredo. Se fizéssemos o mesmo com a vida, verificaríamos como é possível aplicar estruturas semelhantes, à despeito da duração de cada ato – daí a origem do que chamamos de “mimese”, mas isso é assunto para um próximo post.

 

Espero ter ajudado vocês com essa trilogia de esquemas narrativos. Uma última dica que dou é que vocês se lembrem de que alguns desses esquemas são mais fáceis e mais percetíveis que outros – por exemplo, o de três atos é muito mais simples que as funções de Propp. São essas as principais estruturas que vemos na ficção – na não-ficção também, mas isso depende muito do autor -, e se você souber pelo menos a de três atos e a quinária, já estará feito no que concerne a compreender os pontos-chave de uma narrativa.

 

Uma boa leitura pra vocês, e até a próxima!

Estruturas Narrativas: O Modelo Funcional de Propp

(Este artigo é o segundo de uma série de três sobre estruturas narrativas. Após o modelo funcional de Propp, veremos também o esquema quinário.)

 

Não vou mentir para vocês: o modelo funcional não é algo prático de se entender. A questão que envolve tal modelo vai muito além da simples abstração de uma estrutura narrativa em pontos-chave. Na verdade, o modelo funcional chega a determinar que pontos-chave seriam esses. Para entender o porquê, vou falar rapidamente sobre o formalismo.

 

É mesmo necessário?

 

Temo que sim. Lembra de quando eu falei que uma obra e seu autor são frutos do meio? O mesmo acontece com a criação de certas escolas de pensamento.

 

O formalismo na literatura – visto que ele também está presente em outras áreas dentro de Humanidades – procura reconhecer a evolução de acontecimentos dentro da narrativa de forma independente às influências externas. Assim como os químicos veem a fotossíntese como etapas de um processo químico (gás carbônico + água (luz + clorofila) = glicose e oxigênio), também os formalistas acreditam que a ficção (deve) envolve(r) uma progressão perceptível, como se fosse possível entender a trama em termos normativos.

 

Isso não seria algo difícil de obter? Digo, “normatizar” os acontecimentos da obra?

 

Precisamos lembrar que a “Poética” de Aristóteles não era apenas um livro que analisava a estrutura das peças – ele também ensinava como as peças deveriam ser escritas. Manuais de roteiro também explicam como um roteiro ideal deve ser escrito. Quando os formalistas surgiram, entre o final do século XIX e o início do século XX, a tendência era procurar categorizar – uma outra demonstração da influência de Aristóteles – tudo que fosse possível, seja no nível da Arte ou das Ciências Exatas.

 

A fim de categorizar o que chamamos hoje de “sintagmas narrativos”, Vladimir Propp, crítico e filólogo russo, analisou diferentes contos maravilhosos – aqueles que possuem características fantásticas, como contos de fadas – para encontrar o que era comum a todos eles. Resultado: encontrou 31 sintagmas narrativos.

 

31?!

 

Pois é: 31. Seguindo a lógica de que tais sintagmas independem do meio – a maior preocupação dos formalistas era desvincular as áreas de especialidade do meio histórico-social, uma medida que visava eliminar a possibilidade de “contaminação” do processo analítico -, tais contos teriam, sempre, 31 sintagmas narrativos, divergentes apenas em suas formas finais.

 

São estes os sintagmas:

 

1. Afastamento: uma personagem se desloca de um local familiar, seguro.

2. Interdição: existe algo que a personagem não deve fazer, um aviso, uma intimação. Não cumprir pode levar a uma pena ou castigo – mas geralmente leva ao problema apresentado na história.

3. Transgressão: a personagem desobedece.

4. Interrogação: aparece uma antagonista, um agressor surge procurando encontrar meios para atacar a personagem – geralmente perguntando à própria vítima.

5. Informação: a personagem informa o agressor sobre quem ela é, entregando assim também os meios pelos quais a antagonista procurará atacá-la.

6. Engano: o agressor tenta enganar a vítima.

7. Cumplicidade: de forma inocente, a personagem se deixa engrupir pelo agressor.

8. Dano/vilania: surge o problema, o cerne da narrativa.

9. Mediação: entra em cena o heroi para corrigir o dano.

10. Início da ação contrário: o heroi aceita ir contra o agressor.

11. Partida: o heroi sai de seu lar para cumprir sua missão.

12. Função do doador: surge uma personagem actante, na forma de doador, o qual ajudará o heroi de alguma maneira. Para isso, o heroi precisa passar por uma prova.

13. Reação do heroi: o heroi supera a prova e é ajudado pelo doador.

14. Recepção do objeto mágico: não precisa ser um objeto mágico, mas também um conselho. É o prêmio da prova superada.

15. Deslocamento: o heroi se dirige para o local do conflito.

16. Luta: o heroi se atraca ao agressor.

17. Marca: durante a luta, o agressor deixa uma marca no heroi.

18. Vitória: o bem vence o mal.

19. Reparação: o dano é corrigido.

20. Volta: o heroi retorna para casa.

 

E acabou?

 

Quem dera!

 

21. Perseguição: o heroi é perseguido pelo agressor ou seu ajudante.

22. Socorro: o heroi se salva ou é salvo por outrem.

23. Chegada incógnita: o heroi retorna sem se identificar.

24. Pretensões falsas: alguém se faz passar pelo heroi.

25. Tarefa difícil: o heroi precisa cumprir uma prova que mostre que ele realmente é quem diz ser.

26. Tarefa cumprida: o heroi supera a prova.

27. Reconhecimento: o heroi é identificado – às vezes, graças à marca deixada pelo agressor.

28. Desmascaramento: o pretenso heroi é desmascarado.

29. Transfiguração: o heroi é encoberto por uma aura que o muda fisicamente.

30. Punição: o agressor, seus ajudantes e/ou o pretenso heroi são punidos.

31. Casamento: o heroi se casa, geralmente com a personagem envolvida no dano.

 

E onde nós vamos ver tudo isso, afinal?

 

Esse é o problema: a ficção contemporânea não se guia por tais funções, como Propp chama essas etapas. Digo mesmo que a ficção da época de Propp ou anterior a ela mal poderia ser analisada com tal estrutura narrativa. Para que isso acontecesse, precisaríamos sempre de relatos fantásticos, que encontramos ou em contos de fadas ou romances de cavalaria que misturassem a Idade Média com dragões, bruxas, etc.

 

Não existem exemplos recentes, então?

 

Podemos pensar, até certo ponto, em “O Hobbit”, de J.R.R. Tolkien:

 

1. Bilbo se afasta do Condado à convite de Gandalf.

2. Ninguém se afasta do Condado – é algo estranho um hobbit sair para se aventurar pelo mundo.

3. Mesmo assim, Bilbo sai pelo mundo – digo, a Terra Média.

4. Bilbo é capturado por trolls, mas…

5. Gandalf joga informação após informação para cima dos trolls, libertando Bilbo e os demais anões.

6. Surge o verdadeiro agressor: Gollum, que trava uma conversa com Bilbo.

7. Bilbo acaba entregando detalhes importantes sobre si para Gollum – que serão retomados em “O Senhor dos Aneis”.

8. Bilbo carrega consigo o Um Anel.

9. Os anões e Gandalf estão no seu caminho, mas ficariam perdidos sem Bilbo…

10. Bilbo encontra o caminho.

11. Bilbo os reencontra.

12. Os anões são capturados. É quando Bilbo…

13. … usa o Um Anel para salvá-los. É uma prova de heroísmo.

14. Reconhecimento, ora!

15. Eles continuam a jornada.

16. Bilbo se encontra com Smaug, o dragão que guarda o tesouro que os anões desejam.

17. Bilbo recebe uma marca metafórica – se torna ladrão para descobrir a fraqueza de Smaug.

18. Graças a Bilbo e sua descoberta, Bard, o arqueiro, mata Smaug.

19. Bilbo esconde a Arkenstone de Thorin para tenta forçar um acordo de Paz – é uma Reparação que envolve o objeto de desejo de Thorin.

20. O acordo não vai pra frente e Thorin expulsa Bilbo até…

21. Surge um exército de goblins.

22. Thorin e Bilbo lutam juntos.

23. Num nível metafórico, Bilbo, de hobbit calmo, se revelará um heroi.

24. Não há algo do tipo aqui.

25. Bilbo luta durante a batalha – e recebe ajuda.

26. Batalha vencida – mas Thorin morre…

27. … mas antes perdoa Bilbo.

28. Não há algo do tipo aqui.

29. Bilbo é reconhecido pelos demais por seu heroísmo. No aspecto físico, ele bem poderia pegar uma boa parte do tesouro que conquistou.

30. Não há algo do tipo aqui.

31. Bilbo volta para casa – com o tesouro e o Um Anel.

 

Sério que esse é o exemplo mais recente que você arranjou?

 

Infelizmente, sim. E isso se deve principalmente porque Tolkien era um estudioso de narrativas folclóricas, tendo ele mesmo usado partes de contos fantásticos para criar personagens e situações que encontramos em suas obras.

 

Mas uma coisa eu não entendo: por que as partes 24, 28 e 30 não aparecem?

 

O enredo de “O Hobbit” gira em torno de um hobbit comum que procura encontrar seu lugar na Terra-Média. Curiosamente, ele tanto é vítima quanto heroi quanto vilão – afastar-se, ajudar os anões e pegar o Um Anel revelam uma personagem mais complexa que o ideal proppiano. É uma tendência do século XX que as histórias tratem de mergulhar nas dimensões psicológicas – mesmo quando não o fazem conscientemente -, o que impede uma visão tão restrita dessas narrativas, como Propp parece sugerir. Há mesmo subversões e interpretações metafóricas que invertem a posição entre agressor, vítima e heroi. (Compare as funções com o esquema proppiano do romance para verificar onde elas se encontram).

 

Mas então, por que estudamos Propp na faculdade? Qual a relevância dele?

 

Justamente o fato de que ele propõe uma evolução do esquema de três atos. No post anterior, disse que o “clímax é ‘apenas’ um efeito de tensão […] [mas] a passagem para o terceiro ato ocorrerá independente dessa tensão”. Ora, se o final ocorre independente disso, de nada adianta então a participação ativa das personagens na narrativa – ou assim pensamos.

 

Os eventos nas histórias não podem ser vistos de forma isolada da participação das personagens. O que Propp reafirma é a importância de tais eventos, identificados nas funções, representarem a parte ativa do envolvimento da personagem (conscientemente ou não) em um dado momento que parta do início da transgressão até o final feliz esperado. Mesmo ao querer isolar a narrativa dos fatores sócio-históricos, Propp acabou esquecendo que as personagens são, também, frutos de tais fatores, uma vez que representam a percepção do autor sobre o meio – nesse caso, pessoas e humores. Daí que as mudanças históricas e sociais acabam influenciando os autores, indo além da visão de categorias prontas e fechadas.

 

Para contos de fadas onde o caráter (éthos) de cada personagem é delineado de forma determinista (“Cinderela”, por exemplo), a solução de Propp funciona bem – e até mesmo quando vista em tramas fantásticas, uma e outra coisa podem ser aproveitadas. Repare que há várias funções que podemos ver em textos como a “Odisseia” – em particular nas funções 11, 17, 20, 23, 25, 27 e 29 – ou em filmes como “Conquista Sangrenta” (Flesh+Blood, 1986, de Paul Verhoeven) ou a trilogia “Guerra nas Estrelas” – há funções equivalentes a trechos da Jornada do Heroi, de Joseph Campbell, que foi o modelo usado por George Lucas para a criação da série.

 

 

No próximo post, veremos como os estruturalistas criaram o esquema quinário – o mais utilizado da atualidade – observando justamente as funções de Propp.

Estruturas Narrativas: O Esquema de Três Atos

(Este artigo é o primeiro de uma série de três sobre estruturas narrativas. Além do esquema de três atos, veremos também o modelo funcional de Propp e o esquema quinário.)

Image

 

O que Aristóteles e Roupa Nova têm em comum?

Hein?

Ambos tem histórias com “começo, meio e fim”.

Ok, a piada é péssima, mas essa é a questão: toda história tem começo, meio e fim.

Mas isso não é óbvio?

Infelizmente, nem sempre. Você conseguiria definir sua própria vida em termos tão restritivos? Ok, você nasce, cresce e morre – essa é sua narrativa. Mas não aconteceram tantas coisas na sua vida? Não houve momentos em que você deixou de ser um coadjuvante para ter um papel mais ativo? Em que você se viu em meio a algo inesperado e fez o possível para que as coisas voltassem a ficar como antes, ou o mais próximo disso?

Falando assim, você parece dar à vida real uma dimensão heroica…

Pois é. E foi isso que os autores trágicos gregos fizeram: pegaram um heroi (uma personalidade cujos feitos os tornavam admirados pelos homens comuns, havendo mesmo um culto em torno deles) e o fizeram passar pelas provações da vida real. Como? Ora, é “fácil” enfrentar o inimigo a quilômetros de distância do lar – você sabe qual seu objetivo e procura cumpri-lo. E na vida doméstica? Como agir quando há leis ditando que controlam cada movimento seu, sejam elas escritas ou não?

As peças trágicas eram encenadas em celebração ao deus Dioniso, mas o que devemos considerar relevante aqui é o fato de que tais peças diziam respeito à vida comum das pólis, as cidades-estado. Como os herois eram comparados a semideuses e a crença nos deuses olímpicos era inconteste, os autores trágicos usavam enredos que questionavam a percepção desses herois, colocando-os em situações comprometedoras – Édipo, sem saber, mata o pai e se casa com a mãe; Orestes precisa assassinar a própria mãe para não ser amaldiçoado e termina sendo perseguido do mesmo jeito; Agamênon é impelido a sacrificar a própria filha para a vitória dos gregos sobre os troianos, etc. Questionando os herois e seus fa(r)dos, os autores questionavam o establishment, mostrando que a situação estava ficando insustentável – se aquelas coisas podiam vitimar homens tido como “sagrados”, “protegidos”, como o homem comum poderia esperar viver sem medo?

Estruturalmente falando, essas peças eram parecidas, numa sequência previsível. Foi identificando que isso que Aristóteles nos outorgou o mais antigo guia de roteiros e manual de escrita criativa: a “Poética”.

 

Assentamos que a tragédia é a imitação duma ação acabada e inteira, de alguma extensão, pois pode uma coisa ser inteira sem ter extensão. Inteiro é o que tem começo, meio e fim.

(Aristóteles, “Poética”, trad. Jaime Bruna)

 

Como o meu interlocutor imaginário disse antes, isso é óbvio, certo? Pois bem, vejamos aqui algo interessante: Aristóteles diz que a peça trata de uma “ação” com “alguma extensão” e que tenha “começo, meio e fim”. Essa ação – curta ou pequena, tanto faz – é aquilo que Yves Reuter chama de “pedaço de vida” – algo isolado de uma parte maior. Os gregos chamavam isso de “fábula” (mythos) – vulgarmente falando, o enredo. Com tantos acontecimentos que podem envolver a vida de uma pessoa, precisamos de um foco, ver o problema de forma restrita.

Aristóteles continua:

 

Começo é aquilo que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas após o quê, por natureza, existe ou se produz outra coisa;…

 

Ou seja, a situação inicial – o ponto em que a história realmente começa, se queremos estabelecer o panorama que foi prejudicado pelo evento ou complicação.

 

…fim, pelo contrário, é aquilo que, de per si e por natureza, vem após outra coisa, quer necessária, quer ordinariamente, mas após o quê não há nada mais;…

 

A situação final – onde a história termina, o seu desfecho. Vide que ao dizer “não há nada mais”, Aristóteles deixa claro que a trama se encerra, que a vida continua. Aquele evento ou sequência de eventos isolados que formaram a narrativa, no entanto, está encerrado.

 

…meio [é] o que de si vem após outra coisa e após o quê outra coisa vem.

 

Está claro, não está?

Mas vou explicar mesmo assim: “vem após outra coisa” e “após o quê outra coisa vem” são frases que implicam causalidade – o que ocorre no meio é resultado de algo que ocorreu no início, sendo o fim um resultado do que ocorre no meio.

Mas hein?

Vou demonstrar da seguinte maneira:

 

  • Início: Uma situação tranquila até que algo a perturba.
  • Meio: Necessidade de retomar à situação anterior e/ou de remover o objeto de perturbação.
  • Fim: Perturbação neutralizada – talvez voltemos à situação anterior.

 

Os atos têm uma relação causal entre si, e esse princípio de causa e consequência, com duas ideias/personagens/situações em choque, é o que vai guiar a narrativa do início ao fim. Pense em “Um Conto de Duas Cidades”, por exemplo:

 

  • 1º ato: Charles Darnay está casado. Antes, havia sido inocentado de uma acusação por traição.Volta para sua pátria natal, a França. É capturado pelo revolucionários.
  • 2º ato: Darnay é condenado à morte. Sua família e seus amigos tentam imaginar algum plano para salvá-lo. Há confrontos físicos. Entra em cena Sydney Carton, um sósia que se passa por ele no dia da condenação.
  • 3º ato: Charles volta para os braços de sua amada.

 

Quem leu o livro sabe que os acontecimentos não são exatamente distribuídos dessa maneira – o livro tem três partes e apresenta dezenas de personagens muito antes de Charles Darnay aparecer em cena. No entanto, o foco do romance envolve o Sr. Darnay – é em torno dele que giram todas as demais personagens da obra de Dickens. Mas vamos dar outro exemplo, este de uma peça de teatro (“Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams):

 

  • 1º ato: Stella Kowalski recebe sua irmã, Blanche DuBois, em casa. Stanley Kowalski permite que ela fique pois deseja uma posse da família de sua esposa – até descobrir que a propriedade foi perdida.
  • 2º ato: Blanche tenta iniciar um relacionamento com Mitch, colega de trabalho de Stanley. Este briga com a esposa – e depois com Blanche, descobrindo que a cunhada sofre de problemas mentais.
  • 3º ato: Blanche é levada para um manicômio. Stella e Stanley ficam sozinhos, mas os acontecimentos anteriores aparentemente deixaram marcas nos dois.

 

Bem, não é um final muito feliz, certo? As narrativas funcionam em um esquema de causa-consequência, e as contemporâneas levam isso até mesmo pra dimensão psicológica, algo levado em conta numa peça como “Um Bonde Chamado Desejo”. No teatro, a dinâmica é diferente daquela do romance: tudo é mais enxuto, as cenas precisam ter uma sucessão cronológica mais perceptível. E quando os romances começam in media res (no meio da história)?

 

  • 1º ato: Bella Swan se muda para Forks, indo morar com seu pai. Conhece um rapaz estranho – Edward Cullen -, que na verdade é um vampiro. Andando com ele, acaba sendo perseguida por um vampiro forasteiro, James.
  • 2º ato: Bella procura fugir, sendo protegida pelos “irmãos” de Edward, enquanto este e sua “família” tentam perseguir os demais do bando. Mas ela é atraída para uma armadilha, e ocorre um confronto.
  • 3º ato: Sã e salva, Bella começa a namorar Edward.

 

Crepúsculo”, certo? Da Stephenie Meyer?

Certíssimo. E começa no meio: Bella está para ser atacada por James quando o romance começa. Mas precisamos saber como ela chegou até lá, não é? Toda obra tem um enredo principal, cuja narrativa se destaca dentro de uma narrativa maior se formos pensar em termos de franquia, série, sequências, prequels, spin-offs, etc. No entanto, as obras geralmente vem prontas.

Ah, mas e quanto a “Ulisses”, de James Joyce?

 

  • 1º ato: Leopold Bloom (e, paralelamente, Stephen Dedalus) sai(em) para passear por Dublin. O encontro de Bloom e Dedalus vai levar a complicações.
  • 2º ato: Bloom e Dedalus passeiam juntos mas passam por situações complicadas, que vão desde confrontos com antissemitas – Bloom é judeu – ao apego paternal de Dedalus por seu amigo. Os dois chegam na casa de Bloom e se despedem.
  • 3º ato: O encontro com Dedalus causa algum efeito em Bloom, embora não fique muito claro à primeira vista – estamos na esfera do psicológico. No meio de tudo isso, 100 páginas descrevendo o que alguém pensa enquanto se masturba – curiosamente, esse monólogo/solilóquio poderia ser desmontado estruturalmente, como também outros episódios do próprio romance.

 

Certo, mas e “Finícius Revém”?

 

  • 1º ato: Finícius morre e acorda como HCE. HCE é acusado de um crime e se esconde.
  • 2º ato: Ocorrem problemas de ordem edipiana (Freud explica). HCE morre novamente, mas volta a falar por meio de um médium, defendendo-se por meio de um longo monólogo.
  • 3º ato: ALP, sua esposa, tenta acordá-lo. (E começa tudo de novo).

 

Confesso que precisei de ajuda para verificar o esquema de três atos nesse romance, considerando que 1) nunca o li inteiro; e 2) existem dezenas de narrativas paralelas, mas o foco está no próprio Finícius. Toda história tem início, meio e fim – toda, mas toda mesmo. O fato de haver camadas superficiais é apenas um detalhe.

Ok, eu entendi você chamar tais momentos de “atos”, mas pode me explicar a imagem acima?

O primeiro ato (situação inicial/introdução) vai estabelecer o status quo a ser perturbado, o que implica em cenário, momento histórico, estado emocional, etc. – o plano de fundo. É durante esse ato que ocorre a alteração de estado.

O segundo ato (complicação/desenvolvimento) mostra como os envolvidos lidarão com essa perturbação. É nesse momento que vemos confrontos significativos, a busca por algo definitivo e que ponha as coisas no lugar.

O terceiro ato (situação final/conclusão) mostra como o confronto foi resolvido e se as coisas voltaram (ou voltarão) a ficar da forma que estavam antes da perturbação.

Ok, mas e o clímax?

O clímax não é obrigatório. Ele é “apenas” um efeito de tensão, quando as forças que se opõem chegam ao limite no combate. Repare que quando esse confronto não ocorre, chamamos de anti-clímax, porque a passagem para o terceiro ato ocorrerá independente dessa tensão – tudo precisa ter fim.

Quer dizer que esse esquema é recorrente na literatura?

Sim e não. Dificilmente Joyce pensou nele ao escrever “Ulisses”. Acontece que todo enredo precisa de um esquema básico que mostre o ponto de partida e o ponto de chegada, além das paradas feitas no meio do caminho. O esquema serve apenas para simplificar a identificação desses pontos.

Esses “atos” poderiam ser os atos de uma peça teatral?

Sim e não. As peças modernas têm, geralmente, três atos, o que se tornou uma convenção herdada das peças do dramaturgo noruguês Henrik Ibsen, mas vide que ele mesmo escrevia peças que podiam durar vários dias. Eles podem seguir tal estrutura se assim delineados, mas procuro me referir aqui aos momentos-chave de mudança de estado em uma narrativa.

Os atos sempre recebem esses nomes?

Depende do teórico. Por exemplo, roteiristas profissionais usam a estrutura de três atos com outros nomes (Exposição, Conflito, Resolução). Como é um esquema simples, muitas vezes veremos alguém tentando encaixá-los no esquema trágico grego ou latino, na Pirâmide de Freytag, no esquema quinário ou mesmo no modelo funcional de Propp. Essa estrutura é generalizante pois aborda apenas os pontos de virada mais claros – outras estruturas verificarão mais pontos de virada que não são distinguíveis à primeira vista, os momentos-chave do desenvolvimento da personagem, etc. Mas sem pressa por enquanto.

 

No próximo texto, veremos a contribuição de Vladimir Propp, filólogo russo, de orientação formalista, que, através dos estudos de morfologia dos contos de fada e do folclore regional, reconheceu padrões nas mais diversas histórias, influenciando posteriormente os estruturalistas, que procuraram realizar o mesmo através do esquema quinário (tema do último texto da série).

A Santíssima Trindade Literária Aplicada: Um Exemplo

Nas últimas semanas vocês têm lido sobre como se dispõem e do que se trata cada um dos três principais conceitos da interpretação textual – a saber, Texto, Contexto e Subtexto. Cada post era acompanhado de uma imagem que demonstrava visualmente a disposição de cada conceito. E já que estamos falando em interpretação, já deixo claro uma coisa: não sou eu quem vai explicar como a imagem ilustra os conceitos – vocês são os leitores, vocês é que tem de interpretar, e eu já lhes dei as ferramentas. Contudo, antes de deixá-los ir e passarmos para o próximo assunto, vou demonstrar como isolar e perceber tais conceitos em um texto.

Leiam o texto a seguir:

 

JANEIRO DE 1999

O Verão do Foguete

Um minuto antes, era inverno em Ohio, as portas fechadas, as janelas trancadas, as vidraças embaçadas pela geada, pingentes de gelo em todos os telhados, crianças andando de trenó nas colinas, donas-de-casa parecidas com enormes ursos negros, andando com dificuldade pelas ruas geladas com seus casacos de pele.

Em seguida, uma longa onda de calor cruzou a cidadezinha. Um maremoto de ar quente; como se alguém tivesse deixado aberta a porta do forno de uma padaria. O calor pulsou entre as casinhas, os arbustos e as crianças. Os pingentes de gelo se soltaram, despedaçaram-se, derreteram. As portas se escancararam. As janelas se abriram. As crianças se livraram das roupas de lã. As donas-de-casa tiraram as fantasias de urso. A neve se derreteu e revelou os gramados verdes do verão anterior.

O verão do foguete. As palavras correram de boca em boca nas casas abertas e ventiladas. O verão do foguete. O ar quente do deserto redesenhou os cristais de gelo nas janelas, apagando as obras de arte. De repente, os esquis e os trenós tornaram-se inúteis. A neve, que caía do céu gelado sobre a cidade, transformou-se em chuva quente antes de tocar o solo.

O verão do foguete. As pessoas se debruçavam nas varandas gotejantes e observavam o céu avermelhado.

O foguete estava no campo de lançamento, e emitia nuvens quentes de fumaça cor-de-rosa. O foguete ficou lá naquela manhã fria de inverno, criando verão com cada descarga de seus poderosos propulsores. O foguete trouxe tempo bom, e o verão se instalou por sobre os campos por um breve momento…

(Ray Bradbury, As Crônicas Marcianas, trad. Ana Ban)

 

Quando falamos em Subtexto no post anterior, vimos que havia um choque de interpretações em um dos romances de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”. Desconheço se o autor tinha alguma consideração especial sobre o texto acima e os demais publicados em suas “Crônicas Marcianas”. Por isso, antes de procedermos com a interpretação do texto, vou explicar algumas coisas básicas que você deveria conhecer sobre esse livro:

1) Ele foi escrito na década de 1950, embora a primeira “crônica” tenha sido publicada em uma revista de ficção científica em 1947.

2) Bradbury lia muito Edgar Rice Burroughs, criador tanto do Tarzan como do heroi John Carter, soldado da Guerra da Secessão que é transportado para Marte e se torna a salvação dos marcianos.

3) O livro é formado de uma série de “crônicas” que mesmo separadamente têm uma história fechada, independente do restante do livro, mas ao mesmo tempo interdependente, já que ele trata da colonização do planeta vermelho.

4) Se existe algo que leitor algum deveria menosprezar, é justamente a citação inicial, que revela muito sobre a obra antes mesmo de você começar a lê-la. Nesse caso em especial: “‘É sempre bom renovar nosso senso de espanto’, disse o filósofo. ‘As viagens espaciais nos transformam em crianças novamente.’”

 

Agora prossigamos. Além do título, vocês devem ter reparado que deixei outros trechos da crônica em negrito. Ao ler essa crônica, verifiquei no texto indicações que demonstram a percepção que eu, como leitor, tive da obra. Digo isso porque notei algumas coisas que achei relevantes para a compreensão do texto, seus sentidos e o que Bradbury podia ter tido em mente ao escrevê-lo ou cogitá-lo colocar no papel. Pode ser que você, outro leitor, note coisas diferentes ou mesmo divergentes daquilo que notei. Contudo, se eu assumo uma posição em relação a algo, espera-se que eu demonstre como cheguei àquela conclusão. Vejamos então o que eu tenho a dizer sobre o conto com base naqueles três conceitos:

 

TEXTO:

Como sabemos que é uma “crônica”? 1) É curta. 2) Fala de algo curioso que foge do cotidiano. Ele começa descrevendo o clima na cidade (o frio do inverno), e então relata algo que foge do comum (o calor dos propulsores do foguete se espalhando por toda a cidade). Assim como o filósofo, é de se espantar um momento como esse. Nada é descrito com jargão científico, apesar de se tratar de uma obra de ficção científica. Mas sabe o que mais chama a atenção ali? A escolha das palavras. Visualize a cena: crianças andando de trenó, donas-de-casa com casacos de pele andando pelas ruas, a neve caindo. É uma cena bonita, as palavras formando todo o cenário. Em apenas um minuto, toda a cidade recupera seu vigor. É a impressão de alguém que experimenta/visualiza a cena e vê ali algo sobre o que refletir, já que é tão incomum. Não estamos acompanhando o foguete, mas a vida daquelas pessoas, interrompida/marcada por aquele breve momento. Contudo, você não reparou em algo estranho? Janeiro de 1999, crianças com trenó, casacos de pele… e foguetes? O que nos leva ao…

 

CONTEXTO:

Como já disse outras vezes, procure encaixar o autor no período em que ele viveu e a obra na época em que foi lançada. Passados dois anos após o fim da II Guerra Mundial, Bradbury lança essa crônica em separado na revista Planet Stories. Três anos depois, ela forma o conjunto de “Crônicas Marcianas”. Quando os primeiros foguetes são lançados para o espaço? Bem, os alemães tentaram com os V-2 – e claro que não era para fins pacifistas. Resultado? Aqueles filmes de ficção científica de qualidade duvidosa da década de 1950 e “007 Contra o Foguete da Morte” – lembre-se de que o vilão era eugenista.

Então, cinco anos depois do conflito terminado na Europa e na Ásia, o que todos queriam? Paz, com certeza. Mas havia alguma? A crise com a União Soviética estava apenas começando. Aos poucos ambas as potências iam aumentando sua zona de influência e sempre havia o risco de ocorresse um confronto direto – a chamada Guerra Fria. Todo esse temor de uma guerra nuclear em escala intercontinental se refletia nas artes, e Bradbury não ficou indiferente. Ao colocar a data do lançamento do foguete para “Janeiro de 1999”, ele garantia que ninguém o acusasse de ser ideologicamente alinhado e ainda demonstrava que estava certo e esperançoso de que chegaríamos tão longe quanto 1999 – e talvez mais, quando o foguete chegasse à Marte.

No entanto, “donas-de-casa parecidas com enormes ursos negros, andando com dificuldade pelas ruas geladas com seus casacos de pele”? O pessoal da PETA teria um surto se lesse/visse isso nos dias de hoje! “[C]rianças andando de trenó nas colinas”? Mesmo em 1999 já tínhamos Playstations e Dynavisions – e nem me lembre desse raio de videogame! -, além das animações japonesas. A TV havia muito ocupado o lazer dos mais novos – um dos temores de Bradbury em “Fahrenheit 451”. “As palavras correram de boca em boca nas casas abertas e ventiladas”? Quanto vizinhos conversam entre si nos dias de hoje? E o que dizer de “As pessoas se debruçavam nas varandas gotejantes e observavam o céu avermelhado”? Quantos foguetes e satélites e ônibus espaciais já não foram lançados de 1957 – Sputnik I – até hoje? Na década de 1960 era uma sensação ver o homem ir além da órbita da Terra, chegar à Lua. Hoje, isso é trivial.

Logo, por meio de um conhecimento básico de históra, reconhecemos esse texto como sendo, bem, fictício. No entanto, mesmo que não tivéssemos tal conhecimento, perceberíamos que ele não se encaixa em um período recente – a vida mostra isso. A tecnologia evoluiu muito dos tempos de Bradbury pra cá, redefinindo as relações pessoais e a percepção empírica da realidade, o que nos leva para o…

 

SUBTEXTO:

Como disse antes, Bradbury estava esperançoso de que chegaríamos longe, talvez até Marte. Ele deixa isso claro não só usando uma data anos distante de seu próprio tempo, mas através de uma série de imagens que ele passa em seu texto.

O autor começa dizendo “Um minuto antes, era inverno em Ohio…”. Temos duas coisas a considerar aqui: 1) numa era de progresso tecnológico, cada minuto faz muita diferença. Por isso, 2) encontramos a questão de ser “inverno”.

No que você pensa ao ler a palavra “inverno”? Muito frio, né? Apesar de ser uma boa estação para fazer bonecos de neve – pelo menos no Hemisfério Norte -, sabemos bem que nada cresce nesse período. Durante três meses somos confrontados com a provável escassez e a incerteza de que chegaremos até o fim da estação. Exagero meu? E que tal eu mencionar o “inverno nuclear”, um evento que alteraria as condições climáticas em caso de detonações atômicas? Lembre-se: estamos na década de 1950, divididos entre dois países com armamentos nucleares que podem destruir o mundo a qualquer momento. Mas mesmo que não estejamos mais nesse período, que o temor tenha passado, sabemos bem qual é a imagem que temos do “inverno”. O que ocorre logo depois que ele fala sobre isso, então?

[U]ma longa onda de calor cruzou a cidadezinha”. Chegamos ao “verão do foguete”. Ao darem ignição ao foguete, o calor dos propulsores “[revela] os gramados verdes do verão anterior”. E qual a imagem que temos do verão? Calor, certo? Ao contrário do frio, o calor nos anima – há casos e casos. Eu mesmo gosto do frio, mas vocês entenderam a ideia. Desde há muito vemos o “verão” como algo desejável, pois nos revigora. E quando vemos “gramados verdes” então… Aquelas cenas idílicas onde as pessoas correm por eles, sem medo de nada. Não é à toa que o verde é a cor da esperança – esperança essa que surge em todos graças ao progresso científico-tecnológico. O foguete representa a capacidade inventiva do homem de sempre se superar. É ele quem “[cria o] verão com […] seus poderosos propulsores”, mesmo que “por um breve momento”, já que Bradbury sabia que ter tal esperança poderia ser vã – uma incerteza que marca as demais crônicas desse livro.

 

Acima seguiram minhas impressões sobre essa primeira “Crônica Marciana”. O mesmo exercício pode ser realizado por vocês. Lembrem-se de que se trata de confrontar as experiências do autor e as suas próprias. É impossível ignorar nossa própria percepção, mas não podemos ignorar tampouco o histórico do escritor – e nem a própria história. Conheça o básico e você será capaz de interpretar a grande maioria dos textos disponíveis. A Sagrada Trindade Literária está aí para isso: para que você faça uso dela a fim de encontrar a Verdade. E o que é a Verdade? Pergunte ao autor, ao texto e a si mesmo. Não garanto que você vá sempre gostar da resposta, mas é sempre bom ouvir o Outro e saber o que ele tem a dizer – e, às vezes, para fazermos isso, precisamos ter o ouvido bem apurado.

Espero que vocês tenham sucesso ao fazer uso dessas dicas. Desejo a vocês uma boa leitura. Então, até a próxima!

A Santíssima Trindade Literária: Subtexto

(Este é o último de uma série de três textos sobre os três principais elementos de uma obra literária: Texto, Contexto e Subtexto.)

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Continuando com a série de textos sobre a Santíssima Trindade Literária, abordemos agora a parte mais complexa e delicada da Interpretação Textual: o Subtexto. Contudo, como é de praxe, vamos recapitular o que entendemos por Contexto:

O Contexto é a conjuntura que dá razão a um autor para usar certos temas, palavras, expressões, gêneros, etc. O Texto contém a história, mas é o Contexto quem a situa. Considerando que todo autor está inserido em um momento histórico em que alguns temas são mais relevantes que outros, somos apresentados à visão que ele dá, a essa percepção que ele tem de algo que ele acredita ser importante passar pra frente. Na história humana, há temas que são recorrentes (Violência, Religião, Política, Descaso Social, etc.), temas que diversos autores vão se debruçar e dar sua opinião sobre o assunto. No entanto, há vezes em que o autor não expressa claramente sua opinião, esperando que o leitor a capte nas entrelinhas, ou que identifique sobre aquela situação algo que o próprio leitor experimentou – e aí encontramos o famoso Subtexto.

Logo no primeiro parágrafo, deixei claro que o Subtexto é algo complexo e delicado. Dou a esse elemento tais qualidades porque 1) envolve a experiência do autor; 2) envolve a experiência do leitor; 3) envolve o choque dessas experiências e o que sobra; e 4) nem sempre podemos estar certos sobre o que identificamos no final. Neste texto, vou procurar tornar isso mais “fácil” e dizer como não cair nas armadilhas.

Prontos? Então vamos lá. Peguemos mais um conto de Hemingway.

De novo?

 De novo. Mas esse é mais simples.

A garota olhou para as colinas.

“- São belas colinas, ela disse. – Não se parecem com elefantes brancos. Quero dizer, a cor de sua pele vista através das árvores.

“- Podemos beber mais um?

“- Tudo bem.

“O vento quente soprou a cortina de contas contra a mesa.

“- A cerveja é gostosa e gelada, disse o homem.

“- É belo, a garota disse.

“- É uma cirurgia muito simples, de verdade, Jig, disse o homem. Não chega nem a ser uma cirurgia.

“A garota olhou para o chão onde as pernas da mesa estavam colocadas.

“- Sabia que você não se importaria, Jig, disse o homem. Isso é apenas para deixar o ar entrar.

“A garota não disse nada.

“- Irei e ficarei com você o tempo todo. Eles apenas deixam o ar entrar e então e, bem, é perfeitamente natural.

“- E o que ocorrerá a nós depois?

“- Ficaremos bem depois. Como antes.

“- O que faz pensar assim?

“- É a única coisa que nos incomoda. É a única coisa que nos faz infeliz.”

(Ernest Hemingway, Colinas como Elefantes Brancos, tradução própria).

 

Alguém se dispõe a dizer do que se trata o trecho acima?

É muito óbvio, nem foi um desafio na verdade.

Foi, né? Mas e aí? O que faz você achar que seja “isso”?

Bom, ele fala em “cirurgia”, diz que “é a única coisa que nos faz infeliz”. Olha, essa foi fácil de matar.

Não vou discordar de você. Considerando que o tema é um dos mais delicados mesmo em nossos dias, é até fácil entender do que se trata o conto. Contudo, você repara que a única coisa que ele menciona é “cirurgia”, certo?

Certo.

 Por que não seria outra coisa? Um defeito congênito, uma…

Esquece, é isso mesmo.

Não discordo, trata-se disso mesmo. Neste exato momento em que você está lendo este texto, vai reparar que toda vez que menciono o tema coloco um pronome demonstrativo (disso, isso). No mais, você está dando à palavra um significado, formando uma ideia do que realmente existe no texto. Por conta do nosso momento atual, você está mais capacitado a compreender o assunto e discuti-lo abertamente sem risco de cometer um erro. Contudo, se considerarmos que o público de Hemingway quando ele escreveu esse conto (foi em 1927) ainda tinha problemas para aceitar certos assuntos, o jogo para com os leitores daquela época devia ser mais emocionante – pense só: ele usa “garota”, e não “mulher”. Isso indica algo, principalmente porque ele é o “homem”, não o “garoto” – década de 1920, pessoal. Não que hoje em dia não vejamos isso acontecendo, mas naquela época era mais complexo – leia a parte II do conto “Homenagem à Suíça”, também de Hemingway, para entender do que se trata o “Assunto”. Além disso, “elefante branco” em inglês (white elephant) tem o mesmo sentido: um ônus, um peso do qual devemos nos livrar. Assim sendo, acabamos de fazer um exercício em que colocamos a nossa experiência e o Contexto em que foi escrito para formar uma ideia geral do texto – isso é o Subtexto. Mas estou deixando isso muito fácil. Vamos em frente.

Quem aqui leu “A Revolução dos Bichos”? Quem não tiver lido, resumirei: é um romance onde um grupo de animais toma o controle de uma fazenda com o fim de criar um regime político onde todos sejam iguais. Lembra alguma coisa, né? Infelizmente, lembra, sim. Justamente por remeter a algo que conhecemos, sabemos que a história não termina bem. E sem frescura de spoilers, comparemos os trechos a seguir:

 

“[Diz o Velho Major:] Por que então continuamos nesta situação miserável? Porque quase tudo que produzimos com nosso trabalho é roubado de nós pelos seres humanos. Aí está, camaradas, a resposta para todos os nossos problemas. Resume-se a uma simples palavra: Homem. O Homem é o único inimigo verdadeiro que temos. Tire o Homem de cena e a causa-raiz da fome e do trabalho excessivo será abolido para sempre.”

No final:

“As criaturas do lado de fora olhavam do porco para o homem, e do homem para o porco, e do porco para o homem novamente. A essa altura, era impossível distinguir quem era o que.”

(George Orwell, A Revolução dos Bichos, tradução própria).

 

Conhecendo o Contexto em que o romance foi escrito, sabemos que Orwell estava decepcionado com os rumos do Comunismo como aplicado na União Soviética. Apesar de nunca ter abandonado a esperança, ele acreditava que as ideias de Lênin haviam sido totalmente desvirtuadas por Stálin. O romance, então, é uma sátira que não “dá nomes aos bois”, nem aos porcos, nem aos cavalos, mas cada uma das criaturas representa uma instituição ou autoridade importante no regime soviético. Contudo, além do Subtexto óbvio que captamos pela experiência do autor – e que poucos de nós vivenciamos -, temos mais uma lição no romance: por melhores que sejam as ideias, precisamos tomar cuidado com os rumos que qualquer revolução tome. Para os animais da fazenda, os Homens apenas haviam sido trocados pelos Porcos – no final, apenas uma troca de criaturas, nada demais.

Então, até o momento vimos a experiência do leitor e a experiência do autor – e eu deixei claro o choque que ocorre entre ambos. E quando há a dúvida? Vide o seguintes trechos de “Fahrenheit 451”:

 

“‘Você lê algum dos livros que queima?’”

“Ele riu. ‘Isso é contra a lei!’

“‘Ah, é claro.’”

“Se você não quer que um homem seja infeliz politicamente, não dê a ele dois lados para questionar – dê apenas um. Melhor ainda, não dê nenhum. Deixe-o esquecer que existe algo como a guerra.”

 

“Isso não veio do Governo. Não houve edito, declaração, censura para começar – oh, não! Tecnologia, exploração em massa, a pressão das minorias – por Deus, foi isso que aconteceu. Hoje, graças a eles, você pode ser feliz o tempo todo, ler quadrinhos, as boas e velhas confissões, ou os jornais mercantis.”

(Ray Bradbury, Fahrenheit 451, tradução própria).

 

Vamos lá, do que se trata o romance Fahrenheit 451?

De cens…

PLEIM. Errou.

Como assim errei?

 Na verdade, não posso nem dizer que você errou.

Mas então… por que você falou que eu errei?

 Você leu todos os trechos acima?

Sim, bem como o livro.

De fato, e eu também. O romance trata de um futuro onde a sociedade contrata “bombeiros” (firemen, pra vocês entenderem a ironia) para queimar livros e obras de arte. Um desses “bombeiros”, Guy Montag, acaba pegando um livro de curiosidade. E depois. E outro. E mais outro. Ele é casado com uma mulher que vive para assistir/participar de “novelas interativas”. Digamos que as coisas começam a sair dos eixos com esse ato de Montag.

Tá, mas e do que se trata o romance então?

 E eu é que sei?

Mas… você disse….

 Eu disse, né? Esse é o problema: foi EU quem disse. No caso dos exemplos acima, o Subtexto fica claro pelo exame do Contexto das obras, seja pela experiência de Hemingway (uma sociedade conservadora) ou de Orwell (a decepção com o regime soviético). Você pode verificar isso. Mas no caso de Fahrenheit 451? Bem, as respostas são diversas. Veja o que o autor mesmo tem a dizer:

 

“Ao escrever o romance curto Fahrenheit 451, pensei estar descrevendo um mundo que poderia surgir dentro de quatro ou cinco décadas. Mas há poucas semanas, em Beverly Hills, uma noite vi passar por mim um casal que estava andando com seu cachorro. Fiquei olhando para eles, totalmente chocado. A mulher mantinha em uma das mãos um rádio do tomando de uma caixa de cigarros, com uma antena aparecendo. Dessa caixa saía pequenos fios de cobre que terminavam em um cone plugado no ouvido direito dela. Lá estava ela, sem prestar atenção para o marido e para o cachorro, ouvindo ventos distantes e sopros e gritos de uma novela, em transe sonâmbulo, auxiliada pra cima e pra baixo por um marido que poderia muito bem não estar lá. Isso não era ficção.”

(Ray Bradbury, citado por Kingley Amis em New Maps of Hell: A Survey of Science Fiction, tradução própria).

 

Ah, então a resposta certa é “cultura de massa”?

Bradbury diria que sim. Mas e o que você diria? Durante uma palestra na UCLA – alma mater de Bradbury -, o autor saiu batendo o pé quando os alunos não concordaram com ele sobre essa resposta. Eu mesmo diria que ambas as alternativas estavam certas, afinal, o romance deixa transparecer ambos – e essa é uma das belezas da literatura: a possibilidade de que nem mesmo o autor saiba do que está falando, de quantos sentidos ele criou, sem querer, para um mesmo texto.

Portanto, para captarmos o Subtexto, precisamos ter em mente 1) a época em que o texto foi escrito; 2) as experiências do autor; 3) prestar atenção no que aparece no Texto em si, as palavras e símbolos; 4) pensar na possibilidade de que há algo no texto que é recorrente mesmo em nossos dias; 5) e procurar adquirir mais e mais conteúdo, porque muito do que os autores dizem pode ter a ver com as influências que sofreram – a saber, o que leram, que autores admiravam, no que acreditavam.

Então, encerrando essa trilogia de textos, digamos que o Subtexto representa as próprias fundações da ponte – aquilo que veremos desmontando-a. Também podemos dizer que é aquilo que a ponte nos traz à lembrança, o que ela representa para nós – mas mesmo isso tem algum fundamento na realidade, seja no passado ou no presente. Logo, aquilo que não está exposto, o não-declarado – mas implícito -, constitui o Subtexto. Mais uma dica final para vocês: saiba ser moderado e esteja certo daquilo que você entendeu.

Espero que as dicas acima tenham sido úteis a vocês. O próximo texto será uma aplicação mais clara de como identificar todos a Trindade de uma vez.

Obs.: Em todos os três textos eu inseri uma imagem e não expliquei do que se trata – bem como mencionei coisas e não as esclareci. Acreditem, foi proposital. Os textos explicam, a imagem resume – confio no intelecto de vocês. Lembrem-se: quem detém o “poder” da interpretação é o leitor; logo, procure ter certeza daquilo que você entende em um texto – e se preciso for, prove por A + B que você está certo. Literatura é uma via de mão dupla: esperando que o autor tenha feito a parte dele, fazemos a nossa. Nada mais justo.

A Santíssima Trindade Literária: Contexto

(Este é o segundo de uma série de três textos sobre os três principais elementos de uma obra literária: Texto, Contexto e Subtexto.)

 Imagem

Continuando com a série de textos sobre a Santíssima Trindade Literária, passemos agora a outro campo muito importante e necessário para a interpretação textual: o Contexto. Mas, antes de mais nada, recapitulemos o que entendemos por Texto.

Resumidamente, Texto é a parte pela qual você passa os olhos (ou ouve) e que te traz a informação que você processará para sua compreensão. Como na ponte, é o que é perceptível de um ponto de vista superficial, aquilo que você deve percorrer. No entanto, precisamos lembrar que o Texto não é apenas fruto da imaginação do autor – a trama pode ser, mas não o Texto em si. A forma como o Texto é disposto, a escolha de gênero, as formas lexicais (palavras) e sintáticas (a ordem das palavras), e mesmo a trama têm como origem as experiências do autor, um ser humano de carne e osso tal como eu e você que viveu em algum período histórico, foi marcado por algum acontecimento, cresceu em uma certa família, foi de alguma classe social, estudou (com) alguém conhecido, etc. – esse é o campo do Contexto.

Me explique melhor, por favor.

Pois bem, lembra-se do texto passado de Hemingway, Homenagem à Suíça?

Sim, sim. E lembro – na verdade, li – que você falaria mais sobre o assunto, porque algumas coisas que eram captadas em cena não eram o Contexto em si, mas meramente o contexto da cena.

Exatamente. Uma pessoa que ponha um pé na frente do outro está andando – isso é óbvio, é observável. O mesmo ocorre com quem entra em um estabelecimento, faz um comentário isolado e, depois, quando o campo de visão se amplia, é que mostra estar atento à cena – isso é um contexto de cena, não o Contexto.

E que raios é o Contexto?

Recapitulemos o trecho usado no post anterior:

Dentro do restaurante da estação estava quente e iluminado; as mesas brilhavam de tão limpas e algumas estavam cobertas de toalhas com listras vermelhas e brancas; e haviam toalhas com listras azuis e brancas nas outras e, em todas elas, cestinhas com pretzels em saquinhos de papel lisos por causa do açúcar.

(Ernest Hemingway, Homenagem à Suíça – Parte II: Sr. Johnson Fala sobre o Assunto em Vevey, tradução própria).

 

Novamente, notemos algumas coisas: há uma estação, com certeza ferroviária; as toalhas de mesa têm listras vermelhas e brancas, e outras azuis e brancas; há saquinhos de pretzels nas mesas… O que você consegue captar dessa cena?

Bem, conhecendo a história de Hemingway…

Sim, é justamente nesse ponto que eu queria chegar. É por conhecermos a história de Hemingway que entendemos melhor o Contexto da cena que está inserida em um conto. Em primeiro lugar, Hemingway, norte-americano, esteve na 1ª Guerra Mundial atuando na Cruz Vermelha, sendo ferido em combate; segundo, mesmo durante a Guerra, a Suíça se manteve neutra, sendo o local ideal de fuga para os desertores ou para o tratamento especializado dos soldados feridos; e terceiro, a manutenção de tal neutralidade não impedia os suíços de ficarem agradecidos aos norte-americanos por terem derrotado as ditas Potências Centrais.

Tendo tais considerações em mente, conseguimos situar a cena (e o conto) no pós-1ª Guerra Mundial (“toalhas com listras vermelhas e brancas [e azuis e brancas]” – as cores da bandeira norte-americana, representando o agradecimento por parte dos suíços). Além disso, o conto é simples: pessoas que se encontram e conversam sobre qualquer assunto que apareça, cada um à espera de algo que espera encontrar naquela estação ou na próxima. A descrição do cenário é longa, os diálogos são rápidos – uma marca da evolução das comunicações no começo do século XX. Se levarmos em conta que a Suíça foi um lugar pacífico até o fim da guerra, mantendo tal posição neutra mesmo em um confronto mais violento que ocorreria dez anos depois da publicação do conto (1932), esse tédio, essa demora marcam um aspecto psicológico do século XX: a ansiedade pela falta de horizontes em um mundo destroçado e descaracterizado pelo relativismo moral.

Mas hein? De onde você tirou essa?

Pense nisso: de ambos os lados na 1ª Guerra Mundial, os soldados sabiam pelo que lutavam – a pátria. No fim da guerra, os acontecimentos posteriores (Tratado de Versalhes, Crash da Bolsa de Nova York, a ascensão do fascismo na Europa) forçaram a humanidade em geral a questionar os valores que antes tinham como certos – a saber, o dever para com a pátria, o respeito pelas instituições, a sacralidade da propriedade, etc. Enquanto alguns se guiam por um caminho extremista, outros não sabem que caminho tomar – são como a Suíça, indecisos por escolha, mas sem saber o que esperar.

Mas aqui você já não está no campo do Subtexto?

Minha interpretação do conto toma como base o Contexto – vê como isso é importante? No entanto, nem sempre o Subtexto depende do Contexto – neste conto, o(s) tema(s) real(is) são bem variados, sem que dependam de conhecimento histórico prévio. Ajuda ter embasamento para entender as escolhas dramáticas de Hemingway, mas isso não te impede de apreciar a trama. Se você for ler o conto por inteiro, captará temas como feminismo, alienação, divórcio, depressão, questões de ordem paterna, etc. Minha interpretação é uma entre várias possíveis, mas cheguei a ela basicamente prestando atenção ao Contexto em que a obra foi escrita – lembre-se Hemingway foi, antes de tudo, influenciado pelo momento que viveu.

Digamos que eu realmente queira/precise analisar o Contexto de uma obra. Como faço?

Bem, para você avaliar o Contexto de uma obra literária, é preciso que, pelo menos, você 1) saiba quando ela foi escrita e o que estava acontecendo nesse período; e 2) saiba um pouco sobre a história do autor.

E quanto às escolas literárias?

As escolas literárias serão vistas em outro post, mas o período em que são criadas também é importante para a compreensão de suas características.

Certo, você demonstrou através da história e de um jogo filosófico que o Texto é influenciado por acontecimentos externos ao autor. Como verificar aqueles que são próximos, que vem de dentro do autor?

Você já deve ter ouvido falar de Charles Dickens, não?

Ah, Dickens. “Oliver Twist”, “Um Conto de Natal”, “Um Conto de Duas Cidades”, “Grandes Expectativas”…

Pois é. Mesmo quem não leu, pelo menos já deve ter ouvido falar ou visto alguma adaptação de algum texto de Dickens – não faltam versões de “Um Conto de Natal”, com o velho Ebenezer Scrooge sendo interpretado pelo Tio Patinhas, pelo Capitão Jean-Luc Picard ou mesmo por Truman Burbank – procure no Google para saber quem são os últimos dois.

Em seu tempo – e mesmo ainda hoje -, Charles Dickens foi um dos autores mais vendidos, suas obras sendo publicadas e traduzidas quase que instantaneamente após a publicação na Inglaterra. Mas prossigamos para entendermos uma das razões de seu sucesso – leia o trecho abaixo:

Se eu irei me tornar o heroi de minha própria vida, ou se tal condição pertencerá a outrem, as páginas a seguir deverão mostrar. Para começar minha vida pelo seu início, registro que nasci (conforme fui informado e no qual acredito) em uma sexta-feira, à meia-noite. É lembrado o fato de que, quando o relógio começou a soar as horas, comecei a chorar, simultaneamente.

(Charles Dickens, David Copperfield, tradução própria).

 

Se você não souber nada sobre a história de Dickens, curtirá o livro da mesma maneira – uma narrativa longa e descritiva, mas fluida. David Copperfield é um rapaz que come o pão-que-o-diabo-amassou após a morte da mãe. Nas mãos de seu padrasto, passa por todo tipo de penúria, mas nunca desiste de ser dono de seu próprio nariz, um otimista em plena era Vitoriana marcada por ideias retrógradas advindas do Darwinismo social – dentre essas ideias, a de que as classes mais pobres não tinham capacidade para alcançar um patamar intelectual semelhante ao dos mais ricos. Mas Copperfield é uma subversão disso: é um rico que fica pobre e que fica rico novamente. É alguém que mostra que não há categorias definidas ou limitadoras para o ser humano.

Certo, mas você disse que ia falar sobre o Contexto do autor, o que o cercava. Cadê? Onde está?

Preste atenção no nome de David Copperfield. Agora, no de Charles Dickens. Não tem nada aí te chamando a atenção, não?

Hum. Nunca tinha parado pra pensar nisso, mas…

O caso é: Contexto é algo que se apreende fora do Texto. O Texto denuncia as ideias do autor, mas não explica sua origem. “David Copperfield” é considerado até hoje o romance mais próximo de uma autobiografia de Dickens justamente pela história do autor: a família de Charles vivia muito bem, mas o pai acabou sendo preso por estar endividado – igual ao Sr. Micawber, o mentor de David. A família passa por tempos difíceis, todos tendo de trabalhar – incluindo o jovem Charles, que trabalhou numa fábrica de sapatos. Por conta dessa situação, sua obra é constantemente marcada pela vida da classe trabalhadora urbana, sendo Dickens seu porta-voz na luta por melhores condições de trabalho e de vida, além de lutar pelo auxílio aos órfãos, deficientes físicos e menores de idade que trabalham nas fábricas. Dessa experiência, Dickens projeta em seus romances e contos a insatisfação com a revolução industrial que fez progredir o Império Britânico mas que sacrifica a vida de seus cidadãos em nome desse progresso. A narrativa longa se torna uma ferramenta para a reafirmação do caráter humano dessas personagens, com sua jornada envolvendo mesmo os leitores mais afortunados.

Mas e aquela personagem Fagin, do “Oliver Twist”? Dickens foi abertamente antissemita ali, não?

É questionável, mas compreensível se pensarmos a época em que ele viveu – século XIX, com todos aqueles pogroms ocorrendo no Leste Europeu, o preconceito secular, etc. Mas digo que é questionável porque se Fagin, um vilão, era judeu, o Sr. Riah, de “Nosso Amigo em Comum”, também judeu, é representado de forma positiva. E o que falar do Pequeno Tim, de “Um Conto de Natal”, um garoto com deficiência física que se torna o fruto da redenção de Scrooge? Algo impensável para os darwinistas sociais! Ou Sydney Carton, o advogado de péssima reputação que salva a vida de Charles Danton em “Um Conto de Duas Cidades”? Uma personagem criada em contraponto à luta da rainha Vitória pela “moral e os bons costumes”. E que tal o criminoso Magwitch, de “Grandes Expectativas”, não só visto como incorrigível mas tendo sido mandado para viver definitivamente na Austrália, naquela época uma colônia penal do Império Britânico? Ele vai contra as ideias de sua época justamente por ser inocente – e por resistir à corrupção moral em um ambiente desfavorável.

Vide que tudo isso explica as motivações por trás da criação das tramas e das personagens de Dickens. Em alguns momentos, ele assume a visão de sua época, mas em outros ele está muito à frente dela. Tal exame só pode ser realizado considerando os aspectos externos ao Texto, justamente aquilo que chamamos de Contexto – onde e em que momento histórico o autor e sua obra estão inseridos. Como no caso da ponte, precisamos saber onde ela começa e onde termina, as fundações que a tornaram firme a ponto de o engenheiro saber o ponto a partir do qual iria erguê-la – a incerteza pode custar caro se não prestarmos o pouco que seja de atenção nisso, uma lição válida mesmo pra quem já está atuando na área de crítica literária.

A Santíssima Trindade Literária: Texto

(Este é o primeiro de uma série de três textos sobre os três principais elementos de uma obra literária: Texto, Contexto e Subtexto.)

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Vocês se lembram de quando, no post anterior, vimos o exemplo da ponte? Bem, o exemplo é válido mesmo aqui: digamos que o Texto é a parte externa que você vê e percorre da ponte. Se você estiver lendo este mesmo post como se fosse uma ponte, você estará percorrendo-o com seus olhos para chegar a algum lugar que, creio eu, deva ser justamente a compreensão do que se trata um “Texto”.

Mas isso não é óbvio?

Se eu fosse um pouco mais criativo – e malvado -, poderia até destroçar suas expectativas mudando de assunto. Mas como sou bonzinho, continuemos.

As palavras que você lê, na ordem como lê, no idioma que você lê – isso é um Texto.

Ok, podemos ir pra casa agora.

Na-na-ni-na-não. Tem mais.

Tem?

Tem, e muito.

O Texto é, basicamente, a parte que você lê. Não há muito segredo nisso, não é? Na verdade, o Texto denuncia mais do que se pensa – e olha que nem entramos no campo do Subtexto.

Leia o exemplo abaixo:

Dentro do restaurante da estação estava quente e iluminado; as mesas brilhavam de tão limpas e algumas estavam cobertas de toalhas com listras vermelhas e brancas; e haviam toalhas com listras azuis e brancass nas outras e, em todas elas, cestinhas com pretzels em saquinhos de papel lisos por causa do açúcar.

(Ernest Hemingway, Homenagem à Suíça – Parte II: Sr. Johnson Fala sobre o Assunto em Vevey, tradução própria).

 

O que podemos entender desse trecho?

Que ele estava em uma estação, com certeza uma com ferrovias.

E como você sabe disso?

Bem, é Hemingway, ele é do começo do século XX. Não haviam inventado o avião ainda, ele lutou durante a 1ª Guerra Mundial.

Tudo isso é verdade. E o que mais?

Hum… Ele está num restaurante, certo? Talvez esteja esperando por alguém, mas eu precisaria do restante do texto…

Não. Gostaria que você me dissesse o que mais chama a atenção aqui nesse trecho.

Complicado? Um pouco, mas preste bem atenção: por que citar o clima dentro do restaurante? Por que todo o esmero do restaurante? Por que as toalhas têm listras vermelhas e brancas e as outras, azuis e brancas? Por que pretzels? Nenhuma dessas perguntas é respondida apelando pro Subtexto – apela-se pro Contexto.

Ok, mas o texto aqui é sobre o “Texto”, certo?

Certo, e é nisso que eu quero chegar: se Hemingway queria nos passar algo de interessante, uma informação relevante, ele precisava fazer da maneira mais clara possível. O trecho usado como exemplo é uma descrição que apela pra um dos nossos sentidos: a visão. Podemos dizer que não há muito de interessante numa descrição do tipo, mas ela é necessária porque Hemingway quer nos passar dados através de cada palavra, de cada adjetivo, de cada substantivo. A sintaxe (grosso modo, a ordem das palavras) é usada de uma maneira que o leitor não se perca na descrição, é algo muito cuidadoso:

“[…] as mesas brilhavam de tão limpas e algumas estavam cobertas de toalhas com listras vermelhas e brancas; e haviam toalhas com listras azuis e brancas nas outras […]”

Repare que ele começa dizendo que “algumas” mesas estavam cobertas; depois, ele fala que “as outras” também estavam. Que impressão você tem de alguém que nota uma coisa, e depois se corrige quando olha melhor? Apesar de serem toalhas de cores diferentes, ele não explica a diferença de cara, mas apenas na frase seguinte. Pra te ajudar, sim, essa é uma estação de trens. Repito: que impressão você tem, então, de alguém que nota uma coisa em um espaço, e depois se corrige quando olha melhor? Que essa pessoa acabou de chegar. O narrador, então, estabelece aqui a cena para que o leitor visualize aquilo que encontraria caso ele mesmo adentrasse nessa estação: notaria as mesas à frente primeiro, e depois as demais. Veja só: você monta toda a cena somando as partes – temos uma “estação” e várias “mesas”. Iguais? Não, diferentes, mas você só nota quando olha melhor – pelo olhar do narrador. Toda uma série de ações/percepções denunciada apenas pela parte superficial do conto! Imagine o que mais não descobriremos quando analisarmos seu Contexto?

(Revisitaremos esse trecho quando falarmos sobre Contexto, prometo.)

Agora, vamos a outro exemplo:

“[…] quando eu pus a rosa no cabelo que nem as andaluzas faziam ou será que hei de usar uma vermelha sim e como ele me beijou no pé do muro mourisco e eu pensei ora tanto faz ele quanto outro e aí pedi com os olhos pra pedir de novo sim e aí ele me perguntou se eu sim diria sim minha flor da montanha e primeiro eu passei os braços em volta dele sim e puxei ele pra baixo pra perto de mim pra ele poder sentir os meus peitos só perfume sim e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim eu quero Sim.

(James Joyce, Ulysses, trad. Caetano Galindo).

 

Cadê a pontuação? Por que apenas o último “sim” está em maiúsculo?

Quando você pensa, você pensa colocando pontuação?

Foi o que eu pensei. A pontuação é uma forma de esclarecer quais pontos são relevantes dentro de um texto, quando a ideia está contida de forma plena e inteligível, o que pode ser somado, etc. – daí a razão porque é necessário saber usar bem a pontuação, principalmente as vírgulas, que podem ser interrupções, novas ideias, explicações, etc. Contudo, sabemos lá porquê, isso não acontece – aparentemente – quando pensamos/refletimos/contemplamos/lembramos (sobre) algo. Pela cena acima, temos uma descrição de atos (“puxei ele pra baixo pra perto de mim”), cenário (“no pé do muro mourisco”) e sensações (“e o coração dele batia que nem louco”) que ocorre numa situação recorrente: um pedido de casamento.

Um pedido de casamento? Onde isso está escrito?

“[…] pedi com os olhos pra pedir de novo sim e aí ele me perguntou se eu sim diria sim […]”

Hum, ok. Concordo. Mas por que o último “sim” está em maiúsculo?

Como eu disse acima, pensar sobre algo não envolve o uso de pontuação. Dessa falta de pontuação, podemos presumir que a personagem, uma mulher neste caso, está lembrando de um momento feliz da vida dela. Contudo, em que outra situação uma pessoa diria um “sim” tão efusivo?

Aaaahhhhh

Sacou, né? Pois é. Notando os pequeninos detalhes do Texto, já podemos aprender a história dela e o que ela estaria fazendo nesse exato momento. Nesse trecho, não há descrições visuais, apenas impressões, ora de caráter reflexivo ou sinestésico. É a essa forma de texto onde uma ideia puxa outra sem estrutura formal aparente (uma sintaxe “normal”) que chamamos de fluxo de consciência.

O que destaca ambos os trechos aqui? Primeiro, ambos são bem escritos, cada um dando tantas quantas informações são necessárias para o leitor visualizar a cena; segundo, Hemingway é descritivo, enquanto que Joyce é mais sinestésico – de acordo com esses trechos. Os textos de ambos os autores, se analisados sucintamente, mostrarão muito mais coisas – e olha que já aprendemos bastante só com isso. Mas vamos a mais um exemplo:

“[…] por ora, o Piloto estava, como costumam dizer, preso àquele momento. E o momento incluía a poça de sangue crescendo em sua direção, a pressão da luz do final do amanhecer atravessando a porta e as janelas, os ruídos do tráfego da interestadual, o som de alguém chorando no quarto ao lado.

(James Sallis, Drive, trad. Amanda Orlando)

 

Ah, é a cena de um homicídio, certo? Numa cidade, não é?

Sim, tem uma “poça de sangue” e “os ruidos do tráfego interestadual”, mas não é disso que eu quero falar agora.

Repare nisso: quem está contando a história?

Pois é, temos o Piloto em cena, “preso àquele momento”, mas não é ele quem conta a história. O romance acompanha sua vida (ou “pedaço de vida”, como diria Yves Reuter), mas não é ele quem narra. Se alguém conta a história de outro(s), com acesso às cenas, pensamentos (às vezes) e falas por completo, dizemos que é uma narração em “terceira pessoa” – basicamente, você nota alguém falando na “primeira pessoa” aqui?

O que mais notamos: a cena é sinestésica, com impressões empíricas (visão e audição). Temos até um comentário curioso (“como costumam dizer”), o que deixa margem para uma interpretação – a de que a história é contada por alguém próximo (dos fatos? Das personagens?), já que esse trecho denuncia um suposto relato oral, como se o Narrador estivesse contando isso para alguém, uma confidência. No entanto, é algo contado para ninguém em particular, como uma lenda urbana, um relato religioso, algo folclórico.

Veja só: sem recorrer às demais partes dessa trindade, o assunto rendeu. Poderia discorrer aqui sobre como o Texto denuncia o gênero, etc., mas acredito ter deixado claro como se analisa o Texto isoladamente – até porque, entraremos nos próprios gêneros mais tarde. Da mesma forma que a ponte, você procura contemplar/atravessar notando por vias visuais e tácteis as condições estruturais expostas. Pra ir além, a estrutura em si, só mesmo fazendo um buraco ou desmontando-a, pedra por pedra – o que nos levará ao Subtexto, do qual falaremos mais tarde.

Uma Visão Pessoal sobre a Interpretação de Texto

De forma alguma pretendo dizer aqui sobre como você deve interpretar aquele romance, poema, bilhete, etc., que você tanto gosta ou odeia. Contudo, considerando os inúmeros choques que ocorrem por tanta gente discordar sobre o verdadeiro sentido de qualquer texto, gostaria de oferecer uma abordagem simples a fim de, pelo menos, explicar como eu faço uma interpretação. Aviso logo que não citarei autores famosos, nem obras de referência; manterei tudo no nível mais simples possível.

Vamos lá: visualize uma ponte.

De ferro, de madeira, de tijolo? Estilo gótico ou rococó?

Apenas visualize uma ponte.

Grande ou pequena? Ao nível do chão ou no alto?

APENAS VISUALIZE UMA PONTE!

Visualizou? Perfeito. Prossigamos.

Como é sua ponte? Não precisa descrever pra mim. Preste bem atenção nela. Se quiser pensar em ângulos, materiais, condições estruturais, siga em frente. Se quiser admirá-la de longe, por mim tudo bem. Contudo, mesmo de longe você vai ter uma ideia de que material ela é feita, certo? De onde ela começa e onde ela termina. Se ela é via de mão única, dupla, ou se tem diferentes saídas.

(Resumindo: a essa altura você já sacou que pedi a você que visualize um texto qualquer como se fosse uma “ponte”, certo?)

Leia o antepenúltimo parágrafo. O que acabei de fazer ali – e pedi que você fizesse – é uma interpretação. Você visualizou a ponte, se dispôs a conferi-la ou então a contemplou de um determinado ponto, pensou em como ela foi feita e mesmo quais as alternativas que ela dá a você.

Na verdade, o que você fez foi analisar a estrutura da ponte. E quando eu digo “ponte”, o que eu quero dizer mesmo? Um texto. Todo texto possui uma estrutura. Chama-se essa análise de “análise estrutural da narrativa”, e é o meu tipo favorito de análise. Por que? Bem, porque da mesma forma que você visualiza o material da ponte, eu visualizo as características e desenvolvimento das personagens de um texto (assim como uma ponte geralmente é constuída com tijolos baianos e blocos de concreto lado a lado, há personagens “planas” e “redondas” em uma mesma obra – explicarei isso mais tarde); da mesma forma que você contempla a ponte, procuro entender como o texto é disposto (ou seja, o que conhecemos comumente como “início-meio-e-fim”); e da mesma forma que você verifica aonde a ponte pode te levar, fico pensando no que o texto tem a me dizer (qual a intenção do Autor? Que sensações ele quer provocar em mim da forma como ele montou o texto, ou seja, de caso pensado?) .

Agora, visualize a ponte de outra maneira.

De novo?

Sim, de novo. Mas de outra maneira, ok? Peço que você visualize a ponte novamente. Mas não pense nela em termos de estrutura, ok? Nem de materiais, nem de ângulos. Não fique parado aí olhando pra ela, mas também não invente de cruzá-la! Visualize a ponte, ou uma ponte, e me diga o que isso representa pra você.

Não pode me dar uma pista?

Lamento. Antes eu tinha te dado “a faca e o queijo”. Agora é por sua conta. Vamos lá: o que ela te diz?

Meu Interlocutor Imaginário – eu amo esse tipo de brincadeira literária! – me produziu algumas reticências que eu quero que você, Leitor, substitua por algo que lhe veio à mente. Quando você pensa em pontes, pensa em que?

Pessoalmente, eu poderia dar várias alternativas: travessia, uma nova jornada, a própria vida, etc. Como eu disse antes, a ponte que você visualiza pode oferecer várias alternativas, sendo que algumas podem não ter sido cogitadas pelo Autor. Essas são algumas das que eu tenho em mente – você pode muito bem recordar-se de um evento da sua infância, ligar a algo que você testemunhou ou recordou… São muitas alternativas! Uma ponte visualizada da forma como eu te pedi nunca será a mesma ponte que outra pessoa visualizou. À parte pessoal da sua interpretação sobre essa ponte, chamamos de “subjetivismo”. A forma como você a visualizou, chamamos de “abstração”.

Portanto, veja só: temos uma “ponte”. Pedi que você a visualizasse de duas maneiras: estrutural e abstrata. Era a mesma ponte, né? Será? Bom, era uma ponte – a menos que você tenha me desobedecido, o que me deixaria muito chateado. (Brincadeira! Apenas peço pra que leia o texto desde o início e obedeça meu comando, ok?)

Uma interpretação de texto exige, basicamente, esses dois tipos de análise. Por que? Bem, de que adianta uma ponte que signifique algo para alguém se ela não puder sustentar o peso dessa mesma pessoa? A ponte tem de ser bem feita, bem construída. Contudo, nunca olharemos para uma ponte sempre dessa maneira, certo? Muitas vezes quem a planejou sabe que a ponte não precisa ser apenas útil – ela precisa chamar a atenção, atrair o olhar, gerar algum tipo de sentimento/sensação (seja de caso pensado ou abstratamente) – e é isso o que chamo de Arte.

Contudo, não vou mentir pra você: existem inúmeras formas de fazer esse tipo de análise – bem como de fazer uma análise da “ponte”, certo? Mas você não tem todo o conhecimento do mundo para fazer isso, tem? Você usa aquele que tem à mão – assim como eu uso aqueles que eu tenho à mão. Como eu disse antes, o que faço aqui é um esboço simples de como eu faço isso.

Desde já, reconheço que a proposta deste texto não é original – peguei-a emprestada de um diálogo entre Kublai Khan e Marco Polo em “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino. (Um abraço pra minha ex-professora, Viviane Veras, que me apresentou esse texto.) A única diferença é que o diálogo sobre a ponte tratava da linguagem, enquanto que eu me dispus a falar sobre literatura. No diálogo entre os dois falava-se apenas da estrutura, enquanto que eu abro espaço para uma análise abstrata – e como não estamos falando de “linguagem” aqui, prefiro não me estender sobre o assunto.

Espero que tenham gostado da minha explicação. Qualquer falha, a culpa é minha, e não do Calvino, ok? Como disse antes, não tenho a menor pretensão em ensinar-lhes como interpretar textos, mas achei que seria bom mostrar que quando se fala em crítica literária, teoria da literatura, narratologia, etc., não é apenas um monte de blá-blá-blá – é só um monte de gente que ama ler e quer aprender mais e mais pra contribuir para o reconhecimento do empenho humano.